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sábado, setembro 06, 2008

Sem esperança


Segundo a edição de hoje do jornal Expresso, o governo angolano recusou vistos a jornalistas do Expresso, SIC, Visão, Renascença e Público como forma de retaliação pelo que nestes espaços é livremente noticiado sobre o país ou para melhor controlar a cobertura mediática das eleições.
Escrevi governo angolano, mas enganei-me. Não existe governo em Angola. O que existe é uma maioria tribal vestida à europeia, exercendo impiedosamente o poder do soba e enriquecendo à custa do cargo que exerce. Sabemos que José Eduardo dos Santos é multimilionário, mas não conhecemos a origem dos seus rendimentos. Gostaríamos de conhecer. Não ficava nada mal que apresentasse ao povo angolano a sua declaração de rendimentos. A sua e a dos seus capangas, também chamados apoiantes do MPLA. Claro está que se o líder da oposição ocupasse o cargo de José Eduardo dos Santos, eu estaria aqui a escrever as mesmas exactas palavras. Não há esperança. O problema angolano é um problema africano: excesso de pensamento e autoritarismo tribais.


sábado, maio 24, 2008

Até ao fim de uma terra qualquer

Aeroporto de Lourenço Marques (anos 60/70)


Na noite já longa, lá fora, homens cavalgando camelos aproximam-se do avião para prestar assistência técnica. Vejo-os passando sob a asa. Alguns, param.
É uma imagem invulgar, portanto estranha. É noite, e uma noite especialmente só. A primeira noite em que ninguém me mandou apagar a luz, e em que me encaminho para a mulher que escreve estas palavras. A mesma mulher, ainda menina, o mesmo cabelo e os olhos claros vazados pela miopia, as mãos com muitas linhas, as pernas gordas nas coxas, que continuam a rasgar as calças exactamente no mesmo sítio. A mesma pessoa, como poderei explicar isto melhor: a mesma pessoa.

Esta memória permanece tão fresca, que podia ter sido ontem à noite.
Na noite, as formas lentas, claras dos camelos encimados por homens de turbante. A toda a volta, uma escuridão apocalíptica. Nem uma luz. Foi há 33 anos.

É o aeroporto de Dakar. Acabámos de fazer escala no Senegal por imperativos técnicos. Não saímos do avião, não podemos levantar-nos nem desapertar os cintos de segurança.
Lembro-me que é o Senegal porque na altura pensei, é o sítio de onde vem a margarina. Havia uma margarina muito boa do Senegal e barravamo-la no pão. Em Lourenço Marques. Margarina do Senegal. Não me lembro se fizemos escala em Joanesburgo ou em Luanda. Se calhar fizemos. Só me lembro da margarina do Senegal, e dos homens de turbante sobre camelos, rodeados pela mais funda escuridão.

Digo à hospedeira que preciso de procurar o anel de esmeraldas da minha madrinha, um que trazia, que me caiu dos dedos, que não dei por nada, que deve ter rolado para trás, ou para a frente. Diz-me que não posso levantar-me. Estou desesperada, é um anel de esmeraldas, não me pertence, tenho de o entregar a alguém, depois, não sei quando, está-me largo, caiu, preciso de me levantar e de o procurar. Ela diz-me que não. Só quando chegarmos a Lisboa. Que tenha paciência.

A forma como olhámos para as nossas mãos aos 10 anos, e a forma como olhamos para elas, agora, estou a olhar para as minhas mãos agora, não muda. As mesmas mãos. Como puderam envelhecer e ser ainda as mesmas? As unhas iguais. Os nós. Os mesmos olhos. O mesmo pensamento, quando olhamos, com os mesmos olhos, as mesma mãos.
Reacções iguais perante os acontecimentos, a expressão dos sentimentos, como a alegria, mas sobretudo o medo, não mudam relevantemente ao longo do tempo. A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há-de perseguir-nos sempre.

Não me lembro de sobrevoar Lourenço Marques, a baía. Não guardei essa imagem. Às vezes vou ao Google Earth para ter uma ideia, mas é algo completamente novo. Aquela cidade vista do céu já não é Lourenço Marques, e eu não posso ter qualquer memória da cidade vista de cima. Tento encontrar lugares que não estão lá. Que não reconheço.

Já era muito crescida. Eu pensava que era muito crescida, e na viagem para Lisboa confirmaram-mo. Anunciaram-me poucos dias antes que tomaria conta de irmãs gémeas uns anos mais novas, as quais não conhecia e que nunca mais encontrei na vida. Não sei como se chamavam, se eram louras, altas, como se vestiam, de quem eram filhas, onde viviam e para onde foram viver, nada. Eram umas miúdas, pessoas que ali se atravessavam na minha vida sem qualquer consequência: cabia-me mantê-las no lugar, e dar-lhes segurança. Iam do lado da janela, e ao meio, comigo na coxia, por isso não vi a baía de Lourenço Marques, ou talvez estivéssemos do lado errado do avião.

Quando partimos, muito ao final da tarde, Lourenço Marques ficou para trás do pôr-do sol, muito doce, muito madura, mas já longe quando levantámos; era o lugar onde nunca voltaria; eu sabia; agora tinha de me preparar para ser uma mulher, começar uma vida nova, fazer tudo bem, tudo certo. Sabia que era difícil. Que estava marcada onde não se podia ver, e também não sabia como tinha acontecido nem porquê. Mas sabia-o sem palavras, sem grande vontade. Sei-o, porque reconheço o meu pensamento seguindo pelos mesmos caminhos, enformado nos mesmos moldes. Porque sou a mesma. Lembro-me de como pensava. Era assim. Todos podem testemunhar. Já estou aqui, contudo ainda estou lá, e não sei se interessa sair, o que interessa isso? Na verdade, todo o passado, presente e futuro ali se fundiram, naquela viagem, e eu só posso falar usando as palavras de fronteira, de transição, manchadas, duais que aí se formaram.


Aeroporto do Maputo (imagem Google Earth)

No aeroporto de Lourenço Marques, nos momentos que antecederam a entrada para a alfândega, lembro-me de uma porta de vidro. Quando se atravessava, não tinha regresso.
Via os que tinham entrado, já distribuídos por filas.
Tínhamos chegado tarde, porque o meu pai esquecera-se do anel da minha madrinha, o que perdi no avião, e era agora preciso cumprimentar todos aqueles brancos que se foram despedir da filha do electricista, levando recados, cartas, pequenas encomendas que eu deveria encaixar na bagagem de mão, avisos sobre como deveria contar tudo na Metrópole, tudo o que nos têm feito, diz que perdemos tudo, que o dinheiro não vale nada, que não há que comer, que mataram os Monteiros, que a filha do Sousa, mais o marido, estão presos, conta que estamos quase a ir.

Mas, agora, vai, depois lá nos encontraremos e falaremos. A gente vai a seguir. Agora vai que já é tarde, vai, vai, e agora, neste instante em que tudo está perdido, em que já não há volta, em que entro por essa porta de vidro, após os beijos formais, um sentimento estranho que não consigo controlar, um vazio, nunca mais vou voltar, uma coisa que se perde, um vazio, e esse amor tão escondido, tão evidente pelo meu pai, que me projecta para os seus braços, contra a minha vontade, como uma bala que o atravessa e o torna exangue, eu chorando a fio, não conseguindo largar o seu corpo, e os seus braços enormes, o seu corpo enorme, as suas mãos enormes, a sua carne enorme que beijo, que não quero largar. E volto atrás, chorando a fio, abraçada a qualquer parte desse corpo sagrado, chorando, chorando-o, arranhando-o de amor, como se o mundo acabasse ali, e, oh, acabava, depois a minha mãe, que me sacudia, envergonhada, ela, e eu estava envergonhada, tanta gente, não chores, filha, olha as pessoas, não chores, filha, agora vai que já é tarde, e o corpo doce, doce, ácido, suado do meu pai, o corpo querido do meu pai, a camisa branca e doce, ácida, suada, encharcada das lágrimas que eu não percebia nem controlava. E agora vai, agora vai, e atirou-me para dentro da porta de vidro, ao colo atirou-me para dentro da porta de vidro, e eu voltei-me e vi o seu rosto contrito, do outro lado já, as suas duas mãos inteiras espalmadas contra o vidro. As duas mãos iguais às minhas mãos. Estas, de carne, que agora escrevem esta frase. As mesmas.

quarta-feira, novembro 28, 2007

Novos colonialistas desiludidos

As pessoas não mudam. Quando as reencontramos, muitos anos depois, percebemos por que nos afastámos.

A minha mãe acha que vai morrer e não pode deixar-me sozinha no mundo. Por isso, localizou-a. Eu quero estar sozinha no mundo. Quero a minha mãe e mais os amigos que escolhi, e me escolheram. De resto, por favor, deixem-me completamente sozinha no mundo, mas não me ofendam com as palavras brutais que tive de escutar a vida inteira sem poder protestar, e de que fugi quando fui senhora de mim.

A minha mãe deu-lhe o meu número. Ela queria muito falar comigo. Tinha-me perdido o rasto. Tinha saudades da doce menina perdida: eu. Em 20 minutos, o passado bateu-me no rosto com uma fenomenal chapada. "Os negros, os cabrões, os filhos-da-puta. Vim de lá há um ano. Nunca deixei que me faltassem ao respeito. Chamavam-me mamã, chamavam-me tia, e eu dizia-lhes, não sou tua mãe, que eu não sou puta. Nem tia, ó meu cabrão. E não me assaltas que eu sou branca e estrangeira e ponho a polícia atrás de ti, meu escarumba de merda."
Ouvi isto toda a minha vida. Venham-me falar no colonialismo suavezinho dos portugueses... Venham-me cá com essa história da carochinha.

As pessoas não mudam. Um branco que viveu o colonialismo será um branco que viveu o colonialismo até ao dia da morte. E toda a minha verdade é para eles uma traição. Uma afronta à memória do meu pai, mas com a memória do meu pai podemos bem: eu e ele. Se não fosse pela minha mãe, pelo respeito e amor que lhe tenho, rebentava-lhes os olhos com a minha verdade.
Os carniceiros foram todos tão bonzinhos que quando matavam o cabrito davam as vísceras aos pretos. A tripa. A pele. Pagavam-lhes o trabalho escravo com porrada e a farinha, que comiam com as mãos, aqueles porcos, e se os faziam trabalhar sete dias por semana, sem horário, era apenas o legítimo tratamento de que precisavam os preguiçosos. Um favor que o branco lhes fazia. Civilizar os macacos. E agora, em Maputo, uma falta de respeito. "Faltamos lá nós. Têm saudades. Um branco é constantemente assaltado. Na rua. Em casa. Roubam-nos tudo, os cabrões."
"E, olha, assim que puderes vem cá visitar a madrinha."

Pode bem esperar sentada.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Pacificar África


"Eles hão-de matar-se uns aos outros". "Não querem trabalhar e morrerão de fome." "África sem brancos está condenada. Vão chorar por nós!"
O que os colonos preconizaram para o futuro de África sem poder branco, essas pragas rogadas no embarque para a metrópole, deixando para trás a terra, a casa, a conta bancária já sem valor, todos os bens, em alguns casos a vida roubada a um filho, um marido, uma mulher, um amigo, tornaram-se realidade pouco depois. O massacre militar e civil começou com as guerrilhas levadas a cabo por movimentos oposicionistas financiados pelo apartheid, ou pelo ocidente anti-comunista, contra os governos formados a partir das independências, e perdura, hoje, viabilizado pelos neocolonialismos, ocidentais, orientais, económicos em geral, e pelo desgoverno de líderes oportunistas e corruptos - o que se aplica não apenas às ex-colónias inglesas e francesas, mas também às que foram nossas.
As ex-colónias não foram ainda capazes de garantir a sua autonomia económica e política, tendo mergulhado num caos sangrento, social e culturalmente desestruturante.
Tomando-me como testemunha do período de dez anos que antecedeu as independências, e também do que as iniciou, fazendo passar pela memória os inúmeros momentos de crise grave durante a guerrilha pós-independência, e observando o panorama actual africano, torna-se claro que a ditadura colonial foi o que de mais suave aconteceu em África no último século. Não há nesta afirmação qualquer intenção de branquear as violências e injustiças coloniais cometidas sob o meu olhar. Eu sei o que vi e ouvi, o que mantenho guardado. E sei que há argumentos válidos dos dois lados. Ou seja, os brancos eram maus, mas nem todos o eram. Os negros eram explorados e oprimidos, mas nem todos os explorados e oprimidos albergam um coração simultaneamente revoltado, magoado e puro. Ou seja, os bonzinhos não são todos contaminados pela bondade. A dura verdade é que nesses terríveis anos coloniais os negros ganhavam quase nada, mas o que ganhavam, mesmo acrescentando a porrada, dava para comer e andar esfarrapado, e fazer aguardente de cana, e de caju para o Domingo. Era humilhante, sim, mas os filhos ainda não assassinavam os pais, e os irmãos não violavam as irmãs, e havia um ódio unificador comum: o colono, o explorador, a estrutura de exploração colonial que sustentavam a troco da farinha com peixe seco diários. No meio de tudo isto, uma certa paz podre, sim, sem dúvida, mas nela não se matavam uns aos outros. Ficou o podre; quase só o podre. Sim, era opressão, nenhum equívoco, mas quantos massacres de Wiriamu, multiplicados, sofreu África desde que os colonos saíram? E por que motivo me parece que quem os governa hoje não é menos injusto nem menos violento do que nós fomos? O opressor, o explorador continua por lá. E explora tanto ou mais. E com menos escrúpulos. Hoje é negro. É o irmão negro ou o amarelo, e as mãos continuam a ser besuntadas para se chegar à justiça, ou esquecê-la. Não há grande diferença entre o regime no qual vivem agora os povos das ex-colónias, e aquele que viveram sob os interesses portugueses.
Quero perceber como será possível pacificar África. E
ssa seria a quimera que quereria ver realizada.

sábado, outubro 14, 2006

Uane, tu, fri, for, faive

Aviso já que este texto não interessa nem ao Menino Jesus (nem este nem os últimos).

No TCM está a passar um filme-documentário sobre o Elvis, que cursou no cinema Infante, em Lourenço Marques, por volta de 72, 73. Lembro-me que os bilhetes estiveram esgotados durante toda a temporada, e foi longa. Consegui vê-lo numa matiné de domingo, com alguém amigo, e não achei graça. Era o Elvis a ser o Elvis, e o Elvis nunca foi grande coisa, como se sabe.
Nesse aspecto não me tornei muito diferente, mas nessa altura ainda não podia adivinhar.
Mas Elvis foi um ídolo juvenil em Lourenço Marques, inclusive para o movimento hippie local, que, nesse tempo, e já um pouco extemporâneo, fervilhava entre os laurentinos*: cabelos compridos, calças à boca de sino, os fumos da ordem.
O meu primo dava-lhe bem, antes e depois da comissão no Norte, na guerra aos turras.
Curiosamente, nos EUA e no "mundo civilizado, Elvis foi um fenómeno popular, do sistema, e não pôde estar em sintonia com o movimento hippie. Mas tenho a ideia que na colónia terão existido umas adaptações realizadas por via da música de inspiração rock, blues, soul - música de batida negra. O movimento disperso seria essa filiação a um tipo de música.
Para o colono tradicional, que ouvia fado-canção e fado-castiço, a Hermínia Silva e o Alfredo Marceneiro eram ídolos máximos. E Amália, claro. Mas Amália já era fina. Eu, infelizmente, gramei muita Hermína, e muito Alfredo, valha-me Deus! Hoje já os ouço de outra forma, mas quando era pequena aquilo era uma ofensa auditiva. Tal como Elvis o foi para os ouvidos do colono tradicional. Por isso não vi este filme com os meus pais.


Eras giro, eras muita giro, lá isso eras!

Os filmes da moda chegavam pouco a uma colónia longínqua onde não havia televisão. Víamos muitas americanadas, franceses e italianos de autor, a que o meu pai chamava "xaropadas" sem acção, mas eu gostava. Os filmes portugueses enchiam salas, sempre, mesmo muito maus. Havia uma grande sede por comédia à portuguesa, pelos actores que eram famosos na metrópole, como o Raul Solnado e a Florbela Queirós.
Eu gostava dos Cantiflas, dos Jerry Lewis, e de Trinitá, o Cowboy Insolente, que comia feijões. Ainda hoje tenho uma paixão por tudo isso. Uma nostalgia.
No outro dia, na FNAC do Chiado, vi de longe um conjunto de dvd's do Trinitá e exclamei, um bocado alto, é verdade, mas foi do fundo do coração, e foi sem querer, juro, "meu Deus, está ali o Trinitá, o cowboy insolente", e deixei umas cem pessoas a rirem-se para dentro.

A minha prima afastada afastou-se mais, e mandou-me um sms no qual dizia apenas, "não te conheço!"
É injusto!


* Brancos naturais de Lourenço Marques, como eu.

terça-feira, julho 04, 2006

Uma tangerina madura abriu os gomos

As camisas do meu pai eram brancas.
Era sábado à tarde. A minha mãe tinha ficado de escrava ao quintal. Aos coelhos que tinham sarna. Ao transplante de nabiças para regos de terra que ela própria cavava, negra.
Era sábado à tarde, depois do almoço, cuja alquimia lhe tinha pertencido.
Era depois de me ter vestido de lavado, e ao meu pai. Como todos os dias.

Sábado à tarde de luz bronzeada nos ombros, de brisa marítima muito fácil através dos cabelos. Trinta graus secos. O peito movia-se devagar. As narinas abriam-se e fechavam-se, lentamente. Porque era o sul. Respirava-se.

Sentada na Bedford branca que o meu pai conduzia na estrada da Matola, a caminho de Lourenço Marques, uma tangerina madura abriu os gomos dentro do meu cérebro.
Uma revelação, um milagre: num segundo, sem explicação, li alto, e de uma só vez, a publicidade pintada nas laterais dos prédios, “Singer, a sua máquina de costura; beba Coca-Cola; pilhas Tudor; com Lux cabe sempre mais um; cerveja 2M, tudo o que a gente quer”.
Sumarenta, a tangerina aberta, uma flor no meu cérebro, era doce; e disse ao meu pai, “sei ler”. Sorriu-me, “és o meu tesouro”. Não disse, pensou, “és tudo para mim”.
O meu pai vestia uma camisa de algodão fino, muito branca. Lavadinha, passada a ferro com zelo pela minha mãe, apertada demais no botão da barriga, quase a esgarçar. A pele do meu pai, tostada, brilhava de brilho. E os olhos, de brilho. O sorriso do meu pai sorria sozinho. Sem nada mais escondido. À noite chegaria a casa com a camisa negra de nódoas, porque o meu pai tocava e deixava tocar-se pelo pó, pelo carvão, pelas laranjas, por mim. Agora estava impecável. No bolso da camisa notava-se um resto de nódoa a tinta de caneta rebentada. Coisa de nada. Um milímetro. Impecável.


Essa tarde era feliz: iríamos passear no Zambi, levar-me-ia a comer iogurtes à Baixa, ou talvez fôssemos petiscar moelas à Laurentina. Deixar-me-ia bebericar cerveja do seu copo. Ou um penálti, um tricofaite. Soltar-me-ia a mão, e eu poderia correr, e respirar sozinha, sem cercas, um pouco – sozinha, sem cercas, um pouco, respirar fundo, respirar o ar agridoce de catinga, pólen e amendoim - porque ao lado do meu pai nenhum preto pensaria roubar-me para fazer-me mal, para me vender; ninguém iria roubar-me nem molestar-me, essa culpa de que também eu seria culpada porque o meu sorriso era demasiado puro; o meu pai estava ali, e as suas mãos eram como patas de urso; contar-me-ia histórias de quando era novo, na metrópole; a da nuvem que desabava sobre si, no caminho de Óbidos para as Caldas, e da qual ele fugia, correndo à mesma velocidade, e na mesma direcção, mantendo-se, afinal, debaixo dela; do que só se apercebeu quando parou de pulmões rebentados, e a nuvem pôde finalmente ultrapassá-lo. A memória dele. Não, a minha. As suas histórias ridículas, para que eu me risse, e involuntariamente soubesse que é doce ser ridículo, ser só uma pessoa ridícula, ser uma pedra, um pão acabado de cozer. Ser nobremente ridícula foi uma filosofia de vida.



Disse-lhe, “pai, já sei ler”, e encostei a cabeça para trás, pousando-a na almofada do assento, com os olhos fechados, enquanto absorvia a maresia que vinha da direita, dos sapais ao lado da Sonefe. Os meus músculos, sempre tensos, afrouxaram. Agora já não era a guerra em mim, e podia descansar; as regras de leitura fizeram sentido num ápice, só porque a tangerina teimosa decidira abrir-se por inteiro no meu cérebro, como um polvo que alarga os tentáculos. Ali, dentro do carro, a caminho de Lourenço Marques, perto da Sonefe, como a primeira menstruação.
Sabia ler. Tinha sido difícil. Agora, este milagre. Tão rápido. Sabia ler. Abri de novo os olhos, para confirmar, e li, como se não tivesse feito outra coisa toda a vida, “cigarros LM long size, a vida moderna para o homem moderno”. Sabia ler. Era mesmo verdade. Não percebia como tinha acontecido, mas sabia ler.


Esse milagre de ler, essa magia tão rápida no meu cérebro, como se alguém tivesse movido a varinha à distância ou soletrado as palavras misteriosas, desenfeitiçaram-me.
A partir dessa tarde de sábado, embora a minha prisão física não se alterasse, e os muros e as grades de ferro continuassem altos à minha volta, em todos os lugares, tornei-me mais livre.
As frases podiam roubar-me a qualquer lugar, levar-me para dentro de mentes diversas, e escutar o que pensavam, e não diziam; as mentes dos bons e os maus e os mais ou menos, que eram a maior parte; sentar-me em navios perdidos, pairar sobre vulcões e dormir em jardins de rosas e sombras suavemente lilases.

Foi quando comecei a tornar-me a sua pior inimiga. A inimiga lá dentro, calada. Que vê, e escuta e nem pediu autorização. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira.
Só muitos anos mais tarde, muitos, muitos, compreendi que saber ler, o acesso a essa chave para descodificação do segredo, me transformara, contra todas as vontades, na toupeira que lhes havia de roer todas as raízes, devagar, uma de cada vez, até restar nada. Quem mais os amou foi a sua pior inimiga.
O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre. Sei.

segunda-feira, maio 29, 2006

Não se sai vivo de sítio nenhum

Na outra vida tive um gato chamado Bolinhas. Periodicamente, fugia pela janela da cozinha, e desaparecia durante semanas, meses. Regressava magro, sujo, em sangue, sem uma orelha, falto de unhas, com o rabo cortado, chamuscado e zarolho. Miava à janela por onde tinha saído, abriamo-la, e entrava lento e moribundo, perante a nossa incredulidade. Demorava a recompor-se. Quando ia, nunca davamos pela partida, nem sabíamos se regressaria. Nunca soubemos, e foi assim durante anos.
Depois veio a guerra, ou seja, a Frelimo, e os gatos ficaram abandonados em Lourenço Marques. Disseram que os pretos os comeram. Os gatos e os cães que os brancos deixaram para trás, não os contentores com a mobília de pau-preto nem os cinzeiros de pé alto, em pau-rosa, ou os dentes de marfim, em marfim, foram todos comidos pelos pretos e pelos chinas e pelos monhés, que deviam ter atentado nos seus hábitos alimentares, porque a carne, mesmo magra, faz subir o colesterol.

O tempo de um gelado no McDonalds

Sentia-me gulosa e fui ao McDonalds de Almada comer um McFlurry de Oreo. O gelado ia-me sabendo bem, enquanto meditava nas calorias e obser...