As camisas do meu pai eram brancas.
Era sábado à tarde. A minha mãe tinha ficado de escrava ao quintal. Aos coelhos que tinham sarna. Ao transplante de nabiças para regos de terra que ela própria cavava, negra.
Era sábado à tarde, depois do almoço, cuja alquimia lhe tinha pertencido.
Era depois de me ter vestido de lavado, e ao meu pai. Como todos os dias.
Sábado à tarde de luz bronzeada nos ombros, de brisa marítima muito fácil através dos cabelos. Trinta graus secos. O peito movia-se devagar. As narinas abriam-se e fechavam-se, lentamente. Porque era o sul. Respirava-se.
Sentada na Bedford branca que o meu pai conduzia na estrada da Matola, a caminho de Lourenço Marques, uma tangerina madura abriu os gomos dentro do meu cérebro.
Uma revelação, um milagre: num segundo, sem explicação, li alto, e de uma só vez, a publicidade pintada nas laterais dos prédios, “Singer, a sua máquina de costura; beba Coca-Cola; pilhas Tudor; com Lux cabe sempre mais um; cerveja 2M, tudo o que a gente quer”.
Sumarenta, a tangerina aberta, uma flor no meu cérebro, era doce; e disse ao meu pai, “sei ler”. Sorriu-me, “és o meu tesouro”. Não disse, pensou, “és tudo para mim”.
O meu pai vestia uma camisa de algodão fino, muito branca. Lavadinha, passada a ferro com zelo pela minha mãe, apertada demais no botão da barriga, quase a esgarçar. A pele do meu pai, tostada, brilhava de brilho. E os olhos, de brilho. O sorriso do meu pai sorria sozinho. Sem nada mais escondido. À noite chegaria a casa com a camisa negra de nódoas, porque o meu pai tocava e deixava tocar-se pelo pó, pelo carvão, pelas laranjas, por mim. Agora estava impecável. No bolso da camisa notava-se um resto de nódoa a tinta de caneta rebentada. Coisa de nada. Um milímetro. Impecável.
Essa tarde era feliz: iríamos passear no Zambi, levar-me-ia a comer iogurtes à Baixa, ou talvez fôssemos petiscar moelas à Laurentina. Deixar-me-ia bebericar cerveja do seu copo. Ou um penálti, um tricofaite. Soltar-me-ia a mão, e eu poderia correr, e respirar sozinha, sem cercas, um pouco – sozinha, sem cercas, um pouco, respirar fundo, respirar o ar agridoce de catinga, pólen e amendoim - porque ao lado do meu pai nenhum preto pensaria roubar-me para fazer-me mal, para me vender; ninguém iria roubar-me nem molestar-me, essa culpa de que também eu seria culpada porque o meu sorriso era demasiado puro; o meu pai estava ali, e as suas mãos eram como patas de urso; contar-me-ia histórias de quando era novo, na metrópole; a da nuvem que desabava sobre si, no caminho de Óbidos para as Caldas, e da qual ele fugia, correndo à mesma velocidade, e na mesma direcção, mantendo-se, afinal, debaixo dela; do que só se apercebeu quando parou de pulmões rebentados, e a nuvem pôde finalmente ultrapassá-lo. A memória dele. Não, a minha. As suas histórias ridículas, para que eu me risse, e involuntariamente soubesse que é doce ser ridículo, ser só uma pessoa ridícula, ser uma pedra, um pão acabado de cozer. Ser nobremente ridícula foi uma filosofia de vida.
Disse-lhe, “pai, já sei ler”, e encostei a cabeça para trás, pousando-a na almofada do assento, com os olhos fechados, enquanto absorvia a maresia que vinha da direita, dos sapais ao lado da Sonefe. Os meus músculos, sempre tensos, afrouxaram. Agora já não era a guerra em mim, e podia descansar; as regras de leitura fizeram sentido num ápice, só porque a tangerina teimosa decidira abrir-se por inteiro no meu cérebro, como um polvo que alarga os tentáculos. Ali, dentro do carro, a caminho de Lourenço Marques, perto da Sonefe, como a primeira menstruação.
Sabia ler. Tinha sido difícil. Agora, este milagre. Tão rápido. Sabia ler. Abri de novo os olhos, para confirmar, e li, como se não tivesse feito outra coisa toda a vida, “cigarros LM long size, a vida moderna para o homem moderno”. Sabia ler. Era mesmo verdade. Não percebia como tinha acontecido, mas sabia ler.
Esse milagre de ler, essa magia tão rápida no meu cérebro, como se alguém tivesse movido a varinha à distância ou soletrado as palavras misteriosas, desenfeitiçaram-me.
A partir dessa tarde de sábado, embora a minha prisão física não se alterasse, e os muros e as grades de ferro continuassem altos à minha volta, em todos os lugares, tornei-me mais livre.
As frases podiam roubar-me a qualquer lugar, levar-me para dentro de mentes diversas, e escutar o que pensavam, e não diziam; as mentes dos bons e os maus e os mais ou menos, que eram a maior parte; sentar-me em navios perdidos, pairar sobre vulcões e dormir em jardins de rosas e sombras suavemente lilases.
Foi quando comecei a tornar-me a sua pior inimiga. A inimiga lá dentro, calada. Que vê, e escuta e nem pediu autorização. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira.
Só muitos anos mais tarde, muitos, muitos, compreendi que saber ler, o acesso a essa chave para descodificação do segredo, me transformara, contra todas as vontades, na toupeira que lhes havia de roer todas as raízes, devagar, uma de cada vez, até restar nada. Quem mais os amou foi a sua pior inimiga.
O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre. Sei.